Original da carta testemunhável requerida
por Russel Kennedy (Foto: Ribamar Pinheiro
Deu no New York Times: “Americano é assassinado no Brasil”. A
notícia publicada há 80 anos relatou a morte de John Harold Kennedy, 31 anos.
Dois tiros disparados pelo maranhense José de Ribamar Mendonça, 25, bilheteiro
de bondes da Ulen Company, atingiram e mataram o contador da empresa, na Rua da
Estrela, em São Luís, no dia 30 de setembro de 1933.
Sessenta e seis anos depois do homicídio, o jornal britânico The Guardian
noticiou: “Brasil viu o primeiro ato na tragédia dos Kennedys”. Apesar
de o nome de John Harold não constar na árvore genealógica oficial da família, o
periódico acolheu uma versão local, segundo a qual teria sido confirmada por um
cônsul dos Estados Unidos a informação de que Harold seria irmão ilegítimo de
Joseph, o pai de John F. Kennedy, presidente americano assassinado em 22 de
novembro de 1963 em Dallas, Texas.
Muitos consideram que a chamada maldição dos Kennedy começou com a morte de
Joseph “Joe” Junior, irmão mais velho de JFK, em 12 de agosto de 1944, na
explosão do avião que pilotava, durante a Segunda Guerra Mundial, na Inglaterra.
Um dos indícios do parentesco do Kennedy morto no Maranhão com o ex-presidente,
entretanto, é que ambos nasceram no estado de Massachusetts.
TRÊS JULGAMENTOS – A morte de John Harold foi imediata, mas o drama de
Mendonça durou 11 anos, entre 1933 e 1944. Passou por três julgamentos – em
todos eles absolvido - e provocou uma crise diplomática entre Brasil e Estados
Unidos, envolvendo nove ministros brasileiros e três embaixadores americanos. O
livro “Morte na Ulen Company” (Record, 1983), de José Joffily, narra a dimensão
política e social dada aos fatos.
A assinatura de contrato entre a empresa americana e o governo maranhense
para realização de obras públicas e posterior administração de serviços - dentre
eles, transporte, luz e água - ocorreu em 1923. Inicialmente recebida com a
perspectiva de solução para problemas graves enfrentados pela população,
tornou-se, em pouco tempo, motivo de reclamações.
A constante elevação das tarifas, baixos salários pagos aos empregados locais
e a arrogância dos representantes da Ulen estavam entre as principais queixas da
comunidade. Jornais do Maranhão e de outros estados criticavam termos do
contrato, considerado abusivo.
Foi neste contexto que o bilheteiro, demitido poucos dias antes de completar
dez anos de serviços e conquistar a estabilidade na empresa, matou Kennedy. A
vingança pessoal ganhou ares de clamor público antiamericano, especialmente
contra os administradores da Ulen.
A Coordenadoria do Arquivo e Documentos Históricos do Tribunal de Justiça
preserva a carta testemunhável requerida por Russel F. Kennedy, irmão de Harold.
O documento solicitado com o intuito de recorrer ao Supremo Tribunal Federal,
após as três absolvições de Mendonça e à negativa da instância superior a um
recurso extraordinário seu, apresenta atos registrados no período.
Preso em flagrante, Mendonça foi levado a júri popular pela primeira vez em
21 de novembro de 1933. Waldemar de Sousa Brito foi um de seus advogados de
defesa.
“Uma das astúcias dele foi ter enrolado o José Mendonça na bandeira
brasileira, perante o conselho de sentença, como se dissesse: vocês é que têm
que exercer a soberania, que é inerente ao Tribunal do Júri. Nós temos que
mostrar para os americanos que aqui também nós temos Justiça”, destaca o juiz
José Eulálio Figueiredo de Almeida, escritor e pesquisador de julgamentos que
fizeram história no Maranhão.
Mendonça foi absolvido por cinco votos a dois, sob o argumento de que se
achava em estado de perturbação dos sentidos e de inteligência. O promotor Edson
Brandão apelou da decisão, que foi anulada pela Câmara Criminal do então
Superior Tribunal de Justiça do Maranhão, com o fundamento de não ter havido
prévia perícia técnica.
No segundo julgamento, em 18 de abril de 1934, o júri o absolveu por
unanimidade, reconhecendo que o réu cometeu o crime “para evitar mal maior”.
O terceiro julgamento só se realizaria 11 anos depois do crime, apesar do
protesto do advogado, alegando não ser possível fazer retroagir uma lei nova
para prejudicar o réu, já que Mendonça havia adquirido direito dentro do então
revogado Código do Processo Criminal do Estado.
O ex-bilheteiro já vivia desde 1935 no Rio de Janeiro, contratado pela
Companhia Atlantic de Petróleo, quando foi mais uma vez preso. Trazido para São
Luís, encarou o terceiro julgamento do tribunal do júri e de novo foi absolvido,
desta vez por “legítima defesa”.
Em 6 de dezembro de 1944, Russel Kennedy entrou com recurso no Supremo,
usando a carta testemunhável. Mendonça morreu oito anos depois, de infarto, no
local de trabalho.
FRANÇA EQUINOCIAL - Crimes e sentenças de grande repercussão entraram para a
história do Maranhão pouco tempo depois que os franceses invadiram a ilha de
Upaon Açu – como era chamada pelos índios tupinambás – e fundaram a cidade de
São Luís, em 8 de setembro de 1612, em homenagem a Luís IX, patrono da França, e
ao rei francês da época, Luís XIII, no projeto da França Equinocial.
O primeiro julgamento durante a ocupação foi do índio Japiaçu, por mandar
matar e esquartejar uma ex-escrava que havia sido sua esposa, acusada de
adultério com outro índio. Estavam em vigor as “Leis Fundamentais” (1612), o
primeiro ordenamento jurídico do Maranhão, editadas pela Coroa Francesa.
“Eu chamaria de primeiros rudimentos de órgão judiciário no Maranhão”,
compara o desembargador aposentado e pesquisador Milson Coutinho, ao se referir
à junta de justiça formada por loco-tenentes franceses – Francisco de Rasilly;
Daniel de La Touche, comandante da expedição, conhecido como Senhor de La
Ravardière; e pelo padre superior Ives d’Evreux.
Membro da Academia Maranhense de Letras (AML), Coutinho cita o caso no livro
“História do Tribunal de Justiça do Maranhão: Colônia, Império, República”
(SECMA, 1982), disponível na Biblioteca do TJMA.
Num primeiro momento, juízes-caciques e franceses decidiram pela absolvição
do réu. O tribunal entendeu que deveria prestigiar a missão católica na terra
ocupada. Ficou decidido que o perdão só seria alcançado depois de Japiaçu pedir
a intervenção do padre Ambroise d’Amiens.
O índio clamou fervorosamente ao sacerdote que obtivesse do presidente da
Corte, de Rasilly, a graça da absolvição, sendo esta então concedida.
CENÁRIO DE MORTES – Já no Brasil Império, na segunda metade do século 19, a
Rua São João, atual 13 de Maio, no centro de São Luís, foi cenário de duas
mortes que ganhariam repercussão em todo o país.
Num intervalo de três anos e três meses, um desembargador do então Tribunal
da Relação do Maranhão e a mulher que seria, mais tarde, conhecida como a
Baronesa de Grajaú foram acusados de crimes terríveis: José Cândido Pontes
Visgueiro, de 62 anos, pelo assassinato e mutilação da amante adolescente; Anna
Rosa Vianna Ribeiro, 40, pela morte, por maus tratos, de uma criança escrava de
cerca de oito anos.
O magistrado foi condenado à prisão perpétua; a dama da sociedade, absolvida.
Para vários juristas, jornalistas e escritores, dois julgamentos com resultados
equivocados.
CASO PONTES VISGUEIRO – O criminalista Evaristo de Moraes, autor de diversas
obras na história do Direito Penal, deixa claro o seu entendimento logo no
título do livro que escreveu sobre o crime do desembargador. Em “O Caso Pontes
Visgueiro – Um erro judiciário” (Ariel Editora, 1934), ele sugere que o réu não
deveria ser preso, mas submetido a tratamento em hospital psiquiátrico.
Convencido do erro, o autor narra a trajetória de Visgueiro desde a sua
cidade-natal, Maceió, até chegar a São Luís: não falou nem ouviu até os 5 anos;
voltou a ficar surdo aos 15; passou a ouvir mal na idade adulta, até a surdez
definitiva, aos 40. Antes disso formou-se em Direito, foi deputado provincial e
geral, juiz. Neste último cargo passou nove anos no Piauí.
Quando foi nomeado desembargador no Maranhão, já estava totalmente surdo. Por
sugestão do então ministro da Justiça, Saião Lobato, foi nomeado fiscal do
Tribunal do Comércio da província, cargo no qual não teria a dificuldade que
enfrentava para acompanhar os debates no Tribunal da Relação.
Em junho de 1872, o solitário Pontes Visgueiro começou a relação com Maria da
Conceição – já apelidada de Mariquinhas Devassa - que conhecera criança, pedindo
esmolas.
Autores de textos sobre o tema, inclusive Evaristo de Moraes, costumam narrar
que ela teria em torno de 15 anos, embora seu livro cite a sustentação de
Franklin Dória, advogado do desembargador, segundo quem, para os peritos que a
examinaram, “era uma rapariga de 18 a 25 anos de idade”.
“Não havia registro civil na época. Os cartórios só chegaram com a
República”, explica o desembargador Milson Coutinho, para justificar a
inexatidão quanto à idade da adolescente.
O juiz José Eulálio ressalta que, na época, não existia nem a palavra, nem o
crime de pedofilia. “Se existisse, nós poderíamos dizer que o Pontes Visgueiro
era um pedófilo”, sentencia.
Tanto a pesquisa do magistrado quanto o livro de Moraes relatam a paixão
desvairada e os surtos de ciúmes de Pontes Visgueiro por Mariquinhas. Contam que
ele a procurava em casas de prostitutas e outros locais, onde a jovem manteria
encontros com diversos amantes.
Até que um dia, segundo José Eulálio, ele a flagrou com um cadete - o
estudante Joaquim Pinheiro da Costa, de acordo com Evaristo de Moraes. Seria
este fato o estopim para o planejamento da morte de Mariquinhas.
Em companhia de Guilhermino Borges, trazido do Piauí em uma viagem feita para
tentar esquecer a amante, Pontes Visgueiro preparou o terreno para o homicídio.
Encomendou dois caixões, um de cedro e outro zinco, e tentou atraí-la a sua
casa, sob o pretexto de entregar-lhe um presente.
O convite só foi aceito no dia 14 de agosto de 1873, em companhia de Teresa
Lacerda. A amiga foi convencida a retornar só depois do jantar. Supondo-se
sozinha com o desembargador, Mariquinhas foi surpreendida por Guilhermino, que a
dominou, enquanto Pontes Visgueiro a matou a punhaladas.
O corpo não coube no primeiro caixão. Visgueiro teria decepado as pernas e
cortado o pescoço da vítima. A cabeça teria ficado presa ao tronco apenas pela
coluna vertebral. Os caixões, um dentro do outro - o de zinco soldado - foram
enterrados no quintal.
“Eu tenho fragmentos dos autos e lá diz que foi dentro de um caixão de
madeira, revestido por um caixão de zinco. Eu tenho, inclusive, cópias dos
depoimentos que falam isso”, assegura José Eulálio.
A persistência da mãe de Mariquinhas resultou na descoberta do corpo e na
prisão de Pontes Visgueiro, por ordem do Supremo Tribunal de Justiça, nome à
época do atual STF, então no Rio de Janeiro, único competente para julgar um
desembargador.
A população maranhense ficou indignada com o crime bárbaro e muitos atacaram
e apedrejaram a casa do desembargador, que conseguiu ser mantido com vida e
mandado para o julgamento no Rio de Janeiro.
O livro de Evaristo de Moraes conta que, perguntado se sabia por que estava
preso, confessou: “porque matei Maria da Conceição”; e completou, sobre o
motivo: “porque a amava muito”. O termo de interrogatório foi feito com
perguntas e respostas a lápis, em razão da surdez de Pontes Visgueiro.
A defesa de Franklin Dória, futuro Barão de Loreto, foi considerada
brilhante.
Recorreu à tese de transtorno mental do réu, sob a influência de uma
paixão violenta. Tanto para o advogado, à época, quanto para o escritor,
posteriormente, a calma manifestada logo após a prática de crimes horrendos não
era sinal de normalidade, mas sim de anormalidade psíquica dos autores.
O Supremo não aceitou os argumentos e condenou Pontes Visgueiro à pena de
galés, que, pelo Código Criminal do Império, consistia em sujeitar “os réos a
andarem com calceta (argola de ferro) no pé, e corrente de ferro,
juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde
tiver sido commettido o delicto, à disposição do Governo”.
Pelo fato de Visgueiro ser maior de 60 anos, a lei permitia, como a outros
réus de mesma idade, que a pena fosse substituída por prisão perpétua.
“O maranhense Viveiros de Castro, desembargador do Tribunal do Rio de
Janeiro, à época escreveu um artigo dizendo que o Supremo errou, porque
Visgueiro não deveria ter sido julgado como criminoso, mas uma pessoa com
transtorno mental”, disse José Eulálio.
O conselheiro Duarte de Azevedo, então ministro da Justiça, foi visitar a
penitenciária do Rio. O condenado pediu para falar com ele, para saber sobre seu
pedido de aposentadoria; e acrescentou: “sim, porque eu sou desembargador”. O
ministro limitou-se a escrever: “Foi.”
Evaristo de Moraes diz que Pontes Visgueiro morreu na Casa de Correção, em 24
de março de 1875. No final do livro, entretanto, o autor dedica um trecho a
boatos de que ele teria escapado para Portugal.
Segundo o escritor, o desembargador Lucatelli Dória, do Superior Tribunal da
Bahia, contou-lhe ter conhecido um vigário de Santa Rita, Piauí, muito amigo de
Visgueiro. O padre disse ter recebido uma carta em branco de procedência
estrangeira. Submetida a processo químico, ela teria revelado uma escrita do
condenado, informando-o da fuga e da nova vida.
O CRIME DA BARONESA - A história do julgamento de Anna Rosa Vianna Ribeiro é
contada no livro “O Crime da Baronesa” (Lithograf, 2004), de José Eulálio
Figueiredo.
Tudo começou com a morte de Inocêncio, um escravo de apenas 8 anos de idade,
em 13 de novembro de 1876, que vivia sob a guarda e custódia da senhora. O
atestado de óbito assinado pelo médico Antonio dos Santos Jacintho, amigo de
Anna Rosa, informava que o menino havia morrido de hipoemia intertropical,
anemia provocada por vermes.
Na época, conta o autor, era comum o cortejo fúnebre em caixão aberto, no
caso de crianças, empresários, padres e pessoas ilustres. Mas o sepultamento foi
feito às pressas, no início da manhã, com o caixão completamente fechado, e,
inicialmente, não houve investigação da polícia.
Além do mais, acrescenta, um irmão da vítima, Jacinto, também menor, morrera
um mês antes em circunstâncias parecidas.
“O escravo era tratado como coisa, objeto, mercadoria, propriedade do seu
senhor”, diz o juiz.
Apesar da indiferença penal da legislação imperial em relação a crimes contra
escravos, as duas mortes, num intervalo de tempo curto, despertaram o interesse
dos integrantes do Partido Conservador, inimigos do marido de Anna Rosa, o chefe
do Partido Liberal na província do Maranhão, Carlos Fernando Ribeiro - que seria
depois nomeado Barão de Grajaú pelo imperador Dom Pedro II, em 1884.
Os conservadores, liderados pelo Barão de São Bento, Francisco Mariano de
Viveiros Sobrinho, provocaram a autoridade policial e o crime ganhou contornos
políticos.
A primeira perícia no cadáver concluiu, por observação de contusões, feridas
e manchas, que a vítima sofrera castigos e maus tratos. O médico Jacintho
contestou o laudo e nova perícia foi realizada. A dissecação das vísceras
constatou presença de terra e vermes.
A causa das lesões, no entanto, deu margem à instauração de inquérito
policial e tornou-se o centro de uma acirrada disputa em processo entre o
promotor público Celso da Cunha Magalhães e o advogado da acusada, Francisco de
Paula Belfort Duarte.
“As peças são primores, ambos escreviam bem e tinham seus pontos de vista”,
elogia José Eulálio.
O juiz José Manoel de Freitas não aceitou a denúncia, por falta de indícios
de autoria e provas. Celso Magalhães recorreu ao Tribunal da Relação, que
decretou a prisão da acusada. No mandado de prisão da polícia constava a
expressão: “prenda, iminente, a delinquente dita Anna Rosa Vianna Ribeiro”,
destaca o autor do livro.
José Eulálio narra que, levada a julgamento em 22 de fevereiro de 1877, foi
absolvida, porque todas as damas da sociedade compareceram usando trajes e
acessórios pretos, próprios do luto, em protesto a aquele júri.
Por outro lado, os adversários do marido dela não compareceram: ficaram num
prédio ao lado, onde eram informados do andamento do julgamento por Celso
Magalhães, nos intervalos.
O autor relata que os escritores Graça Aranha e Josué Montello deixam dúvidas
quanto à isenta atuação do promotor.
“Qual a conclusão que eu tive? Que Celso Magalhães estava a serviço da
política; que a acusação dela foi política, não jurídica. Os acusadores dela
foram inábeis em demonstrar a culpabilidade por meio de elementos de provas”,
comenta o juiz, para quem o delegado teria que ter feito uma busca domiciliar, à
procura de tais elementos.
No curto período em que foi presidente da província, o Barão de Grajaú
exonerou Celso de Magalhães da função de promotor de justiça.
José Eulálio lembra que o poeta, escritor e membro da AML, José Chagas, num
artigo que consta em seu livro, disse que, após exame feito por seu texto, não
se podia dizer se era o crime da baronesa ou a baronesa do crime, por ser
considerada uma senhora conhecida pela índole perversa.
“Embora tenha se livrado da condenação pelo tribunal do júri, a acusada Anna
Rosa Vianna Ribeiro nunca se livrará da voz pública, do conceito social
atribuído a autores de crimes que ceifam a vida humana de maneira aviltante e
desprezível”, encerra José Eulálio.
Assessoria de Comunicação do TJMA
(98) 3198.4370
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