A Corte Interamericana de
Direitos Humanos da OEA divulgou no final da tarde desta sexta (11)
sentença que condena o Estado brasileiro, atribuindo responsabilidade
internacional, pela não garantia de realização de justiça no Caso Cosme
Rosa Genoveva e outros versus Brasil (conhecido como caso das chacinas de
“Nova Brasília”).
As chacinas aconteceram em
outubro de 1994 e maio 1995, em meio a incursões policiais no Complexo do
Alemão, e resultaram na morte de 26 jovens e na tortura e violência sexual de
três meninas, duas menores de idade à época, todas perpetradas por agentes de
segurança pública do Estado do Rio de Janeiro.
Na sentença, a Corte determina que as
investigações da chacina de 1994 sejam conduzidas de forma eficaz e que se
inicie ou reative a investigação da chacina ocorrida em 1995, com o pleno
acesso e a capacidade de agir dos familiares em todas as etapas.
Uma das decisões mais importantes da
sentença foi o reconhecimento da ausência de investigação dos crimes de violência
sexual, agravada por terem sido praticados por agentes do Estado,
caracterizando uma forma de tortura. Apontou obrigações específicas para
realização das investigações, que devem ser efetivadas por funcionários
capacitados em casos similares e em atenção a vítimas de discriminação e
violência de gênero.
Na sentença, a Corte Interamericana
reconheceu que os fatos do caso fazem parte de um contexto geral de violência
estrutural, destacando que “a violência policial representa um problema de
direitos humanos no Brasil, em especial no Rio de
Janeiro” onde “entre as vítimas fatais de violência policial,
estima-se uma predominância de jovens, negros, pobres e desarmados”.
Em sua decisão a Corte destaca ainda
que “as mulheres residentes em comunidades onde há “confrontos” geralmente
deparam uma violência particular, e são ameaçadas, atacadas, feridas,
insultadas e, inclusive, objeto de violência sexual em mãos da polícia”.
Os homicídios nas duas chacinas
apresentam características de execuções extrajudiciais e foram registrados como
“autos de resistência”, não sendo investigados devido à presunção de que as
mortes teriam sido em decorrência de confrontos. A ausência de procedimentos
idôneos e imparciais resultou no não esclarecimento dos fatos e a responsabilidade
das vítimas por suas próprias mortes.
Neste sentido, a Corte reconheceu
também que “antes de investigar e corroborar a conduta policial, em muitas das
investigações se realiza uma investigação a respeito do perfil da vítima
falecida e se encerra a investigação por considerar que era um
possível criminoso”.
No caso concreto, “no que diz
respeito à conduta das autoridades judiciais, a Corte considera que
não foi dado andamento à investigação, que foi destinada a avaliar a
conduta das vítimas mortas e não dos delegados que as executaram. A Corte
considera que as autoridades não tentaram, de forma diligente, que as
investigações avançassem e que os responsáveis pelos fatos fossem identificados
e punidos.”
Por esta razão, a Corte concluiu que
o Estado violou as garantias judiciais de devida diligência e de um prazo
razoável e reconheceu que houve comprometimento e leniência das autoridades
competentes que atuaram de forma a não prezar pelos protocolos da devida
diligência, deixando as investigações sem qualquer andamento por vários anos e
aceitando a inversão da condição das vítimas a investigados.
A sentença afirma que o Estado
brasileiro violou também o direito à proteção judicial das vítimas, uma vez que
as investigações sobre os fatos foram praticamente inexistentes ou conduzidas
de forma inadequada, sem garantir a participação das vítimas no processo.
A Corte também destacou a ausência de
imparcialidade nas investigações, como obstrução à realização de justiça ao
declarar que “é inadmissível que os mesmos policiais estejam a cargo de uma
investigação contra eles próprios ou seus companheiros de delegacia ou
departamento”, uma vez que a “falta de independência concreta dos
investigadores torna-se evidente da análise de sua relação direta com os
homicidas, suas ações tendenciosas e parciais e a excessiva morosidade dos
procedimentos”.
Por fim, a Corte também reconheceu a
ausência de investigação dos crimes de violência sexual, que foi agravada por
terem sido praticados por agentes do Estado, caracterizando uma forma de
tortura. E neste caso apontou obrigações específicas para realizar as
investigações e o processo penal a partir de uma perspectiva de gênero.
Para
a realização de justiça das violações do Caso, a Corte Interamericana ordenou
ao Estado brasileiro que:
– Conduza “eficazmente a
investigação em curso sobre os fatos relacionados com as mortes ocorridas na
incursão de 1994, com a devida diligência e em prazo razoável, para
identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis. Da
mesma forma sobre as “mortes ocorridas na incursão de 1995, o Estado deve
iniciar ou reativar uma investigação eficaz a respeito desses fatos. Nos
dois procedimentos deve ser assegurado “o pleno acesso e a capacidade de agir
dos familiares em todas as etapas”;
– Avalie se os fatos
referentes às incursões de 1994 e 1995 devem ser objeto de deslocamento da
competência para justiça federal, por intermédio do Procurador-Geral da
República;
– Inclua uma perspectiva
de gênero tanto nas investigações como processos penais referentes aos fatos de
violência sexual, conduzindo linhas de investigação específicas, realizadas por
funcionários capacitados em casos similares e em atenção a vítimas de
discriminação e violência de gênero, assegurando que as pessoas encarregadas da
investigação e do processo penal, ou outras pessoas envolvidas, como
testemunhas, peritos ou familiares da vítima, disponham das devidas garantias
de segurança;
Para
políticas públicas e medidas legislativas e de não repetição
Entre as diversas medidas
e políticas públicas ordenadas para o fortalecimento de mecanismos que
aumentem a eficiência das investigações e a responsabilização de agentes do
Estado envolvidos em casos de graves violações de direitos humanos se
destacam:
– Implementação de medidas
normativas necessárias para que desde a notitia criminis de supostas
mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial “em
que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, se
delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força policial
envolvida no incidente”;
– Exclusão definitiva das
expressões “oposição” e “resistência” dos registros de homicídios decorrentes
de intervenção policial; eliminando os “autos de resistência” como forma de
registro e procedimento;
– Adoção de medidas
necessárias para permitir que as vítimas de delitos ou seus familiares
participem de maneira formal e efetiva da investigação criminal realizada pela
polícia ou pelo Ministério Público;
– Estabelecimento de metas
e políticas de redução da letalidade e da violência policial especialmente para
o Estado do Rio Janeiro;
– Publicação de relatório
anual oficial com os dados relativos às mortes ocorridas durante operações da
polícia em todos os estados do país;
Por fim, as medidas de reparação
ordenadas incluíram a realização de um ato de reconhecimento de
responsabilidade internacional e o pagamento de indenização compensatória que
deverá ser feito no prazo de um ano.
A sentença é paradigmática, pois
reconhece que há um problema estrutural de violência no país, que é fomentado
pela aquiescência de um sistema que conta com administradores de justiça que
não investigam e punem ações criminosas que envolvem agentes de segurança
pública, perpetradas contra um grupo específico que por características de sua
vulnerabilidade estão mais suscetíveis a sofrer tais violações.. Como resposta
a este fenômeno, o Tribunal estabeleceu uma série de medidas para evitar
a repetição de tais violações que o Estado tem a obrigação de implementar.
Para Beatriz Affonso, Diretora do
CEJIL para o Programa do Brasil, “a sentença reconhece que
violência perpetrada pelos agentes de segurança pública do estado do Rio
de Janeiro é cometida em um contexto sistemático, e conta com a omissão dos
administradores de justiça para que essas ocorrências não sejam investigadas e
os responsáveis punidos, fomentando uma dinâmica contínua de impunidade como
causa e consequência da violência de estado”.
“Esta decisão tem muita relevância
por se tratar da primeira sentença da Corte Interamericana em um caso
brasileiro que aborda a impunidade da execução de jovens negros e
moradores de comunidades de baixa renda em decorrência de ações das
policias Militar e Civil”, avalia o pesquisador do ISER, Pedro Strozenberg.
Sobre
o Caso Cosme Rosa Genoveva e Outros v. Brasil (Favela Nova Brasília)
Em 18 de outubro de 1994 a Polícia
Civil do Rio de Janeiro com a participação de policiais militares, utilizando
helicóptero, realizou uma incursão policial na favela Nova Brasília, situada no
Complexo do Alemão. Nesta operação, os policiais executaram 13 jovens, na
maioria negros, além de terem torturado e violentado sexualmente três meninas,
duas delas menores de idade. Em 14 de novembro de 1994 uma Comissão Especial de
Sindicância instaurada para fornecer dados adicionais ao inquérito policial
constatou fortes indícios de execuções sumárias dos jovens e recolheu provas da
violência sexual e tortura das jovens.
No mesmo local foi realizada nova
operação em 08 de maio de 1995, devido a uma suposta denúncia anônima. Com a
utilização de armamento de alta letalidade e dois helicópteros, os policiais
executaram outros 13 jovens. Apesar de a polícia ter alegado a existência de
intenso confronto, vizinhos testemunharam para a imprensa que os jovens saíram
da casa em posição de rendição e foram alvejados pelo helicóptero com tiros nas
cabeças e tórax.
Participaram das duas chacinas
aproximadamente 120 policiais. A maioria das vítimas eram jovens negros e em
ambas chacinas as autoridades competentes não respeitaram os protocolos de
devida diligência, destruindo provas e não realizando perícias importantes para
identificar autores e o contexto em que ocorreram a mortes. Um exemplo é o fato
dos corpos terem sido removidos do local dos fatos e os exames de balística e
residuográficos nos agentes policiais nunca terem sido colhidos.
Os policiais que atuaram nas
incursões também foram responsáveis por abrir e registrar os fatos, no caso os
homicídios foram registrados como confrontos e “autos de resistência”. Foi
construída uma narrativa que os isentava de responsabilidade pelas mortes e
sequer houve investigações para comprovar se ocorrera ou não uso
excessivo de força letal ou execuções sumárias. As vítimas foram registradas
como suspeitos de crime de resistência e os inquéritos se concentravam em
tentar demonstrar seus envolvimentos com o tráfico de drogas, ainda que na
primeira chacina o relatório da Comissão Especial de Sindicância instaurada
pelo então governador Nilo Batista tenha resultado em um relatório que
indicou que encontraram provas que houve execuções sumárias entre as mortes.
O caso é emblemático porque
representa o padrão sistemático e recorrente de violações cometidas por agentes
de segurança pública contra negros e negras que vivem nas comunidades e
periferias das capitais brasileiras. Chegou à Corte Interamericana de
Direitos Americanos em maio de 2015 depois de 15 anos tramitando na na Comissão
Interamericana, sempre impulsionado pelos representantes das vítimas Centro
pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e Instituto de Estudos da
Religião (ISER).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O SJNOTÍCIASMA agradece a sua participação.